Carlos Bocuhy*
Lembro-me de antigas frases da "luz no fim do túnel", "país do futuro", dos tempos da ditadura militar. Soavam como mensagem, não tão subliminar, de que teríamos como país um destacado e seguro futuro no cenário internacional. Nos dias de hoje, assistimos diante da pergunta de qual é a crise, a resposta de um sonoro "ask Bush" proferido pelo presidente do Brasil. Parece um fato inverossímil para os que acompanharam a história sul-americana desde a Aliança para o Progresso, aquele programa de leite americano para as criancinhas brasileiras.
O fato é que novos paradigmas surgiram desde então, em especial o ambiental – e o da Democracia Ambiental. É preciso refletir sobre a atual conjuntura, para considerar como se insere o paradigma da proteção do meio ambiente e da participação social nesse cenário de velocidade ímpar, onde somos "catapultados para o progresso", com os requintes de toda a sorte de intempéries do mercado. Não estamos acostumados a isso e não estávamos preparados para este momento. Nem governo nem sociedade tiveram tempo de refletir estrategicamente sobre o momento histórico particular que estamos vivendo, onde facilidades do crédito pessoal, cartões de crédito e capitais transnacionais continuam sendo ofertados generosamente em cada esquina, apesar da sinalizada bancarrota de um sistema estéril sem reflexos de capital social. Milhares de veículos entram por dia nas ruas, enquanto o pré-sal comemora a fartura do combustível fóssil, que se transformará, na melhor das hipóteses, em bilhões de toneladas de gás carbônico. Quanto à exclusão social, por essa o sistema econômico não parece demonstrar sensibilidade.
Nesse ritmo voraz, debaixo da intoxicante euforia econômica e seus refluxos, não conseguimos refletir estrategicamente, ao passo que a administração nacional é atropelada pelo setor econômico, que antecipa a assunção do governo e de possíveis planejamentos. Sem levantamentos ambientais regionais, a sociedade brasileira desconhece os limites do crescimento e da capacidade de suporte dos ecossistemas. Como China e Estados Unidos já fizeram, estamos postergando a reflexão sobre a seguridade futura, que deveria basear-se no respeito aos limites do planeta, levando em consideração que o tempo econômico é diferente do tempo biológico e que compatibilizando- os estaremos mais próximos da sustentabilidade. A velocidade econômica esmaga ecossistemas ao drenar recursos ambientais, ignorando sua capacidade e seu tempo de regeneração. A Baixada Santista, em São Paulo, experimenta esse ritmo inconseqüente, que vem sendo implementado em processos questionáveis do Gerenciamento Costeiro-GERCO.
Enquanto somos catapultados para este processo avassalador, há um forte e conjuntural apoio político e social aos governos de plantão. De pão e circo sobrevive o burgo, enquanto velhos projetos de integração são ressuscitados, como as rodovias e as ligações aquaviárias transcontinentais. Estamos em pleno "boom" da infra-estrutura que gera estradas, portos e aeroportos, em ampliação compatível com a capacidade econômica de produzir e explorar recursos naturais, para o atendimento de mercados vorazes, como se fosse negócio da China. Não é, mas a generosidade volátil ilude os plantonistas federais e enche os bolsos já recheados do capital produtivo e especulativo.
Na área ambiental federal, saiu Marina Silva, que sabe ler a conjuntura. Enquanto a sociedade brasileira continua na catapulta, Marina voltou à condição de Senadora da República, de onde poderá gritar sem convalidar. A quem o governo foi recorrer? Buscou a encomenda: Minc, hábil agilizador, com apoio de imprensa, rápido no discurso e com respostas no colete, para dirigir a pasta ambiental que deveria sinalizar e propor o respeito ao tempo biológico, frente ao desenfreado tempo econômico. Marina propugnava pela transversalidade, responsabilizando as outras pastas pela gestão ambiental. Estava certa, mas não conseguiu avançar. Não é nenhum exagero prever que o modelo atual vai deixar um passivo enorme, quando conhecemos os processos de avaliação de impacto, que são realizados de forma pontual, onde sinergias e interações sequer são dimensionadas. É algo como edificar uma casa sem avaliar a capacidade das fundações, onde não há engenheiro responsável e quem toca a obra também vende tijolos. Um dia a casa cai. Não há uma política de sustentabilidade para o Brasil.
Neste processo, há um ator fundamental e estratégico: o setor da sociedade que faz a defesa ambiental, mais especificamente dos interesses difusos e, por conseguinte, da sustentabilidade. Tenho me perguntado qual a capacidade de reação deste importante ator diante do cenário conjuntural, considerando que alguns setores econômicos, dentre outros o de silvicultura, tem adotado a prática de distribuir generosas somas como cooperação, entre ongs e universidades, atrelando esses atores a projetos pontuais que poderiam ser executados por consultorias privadas. Com todos catapultados e alguns bem engraxados, há uma lacuna cada vez maior na exigência social pró-sustentabilidade . De outro lado, salvo honrosas exceções, setores de esquerda encastelados em academias processam teoricamente a realidade, dissociando- a da práxis de enfrentamento do movimento ambientalista.
Catapultados para essa nova dimensão de tempo econômico, os defensores do tempo biológico encontram-se hoje em missão quase impossível. O fato é que o movimento ambiental, enquanto movimento cultural - considerando que todo o tecido social está permeado pelo pensamento ambientalista, possui radicularidade e capacidade de intervenção na formação de opinião, mas a atual tour de force está longe de conseguir a desejável mudança de comportamento. Como quem fuma, mas não toma a atitude de parar, essa radicularidade do pensamento ambiental é tangível, mas não garante uma sustentação política transformadora.
Um exemplo disso é a lista de entidades inscritas no Cadastro Nacional de Entidades Ambientalistas, que indica representantes para o CONAMA. Por mais articulado que pudesse ser o segmento ambiental de ongs, por si só, não representa hoje massa crítica suficiente para garantir sucesso político em quedas de braço com o governo. Considere-se aqui a lacuna neste mesmo movimento, ocasionado pela migração e ocupação de espaços do setor não-governamental no governo do PT – considerando o que resta atrelado a projetos e verbas do governo federal.
Por exemplo, em pleno catapultamento monetarista, como enfrentar as intenções e a posição dos setores econômicos e do governo nos processos que envolvem o CONAMA? Respaldado na velocidade econômica, no superávit da balança comercial, no orgulho internacional do "ask Bush" e embalado nos ventos da reeleição, qual a sensibilidade deste governo para atender os pleitos dos ambientalistas? Que forças pode a sociedade mover interna - e internacionalmente, com pressão suficiente para a implementação da sustentabilidade ambiental dentro da atual conjuntura? Há autocrítica? Há uma leitura real da realidade e dos fatos que temos presenciado mês após mês? Há estratégias que possam fazer frente à esse estado de coisas?
Este é um momento que inspira cautela e capacidade de reflexão, voltado para estratégias de médio prazo. Será de todo desejável construir um novo modelo, que possa fazer frente à velocidade econômica e à questão conjuntural. A causa ambiental e a crise instalada são, na maior parte das vezes, inseridas em grau de subjetividade não perceptível para não iniciados. Tratam, sobretudo, de temas afetos à sustentabilidade e à espoliação pela economia global. Essas pautas contam com respaldo muitas vezes negativo da opinião pública, da imprensa marrom, além de encher momentaneamente estômagos e bolsos. Excetuando-se hoje as dramáticas queimadas na Amazônia, que geram justos e recorrentes protestos internacionais, frente aos desafios impostos pelo aquecimento global.
No que diz respeito ao movimento ambientalista stricto sensu, no atual contexto a primeira providência é fortalecer as bases e a criar um coletivo nacional, de caráter agregador, que nunca foi tão necessário. Chamo aqui a atenção para alguns fatores fundamentais nesta necessária requalificação: capacidade técnica, jurídica e de comunicação, além da capacidade agregadora que quebre as barreiras dos habituais sectarismos, em especial dos setores mais radicais, que costumam dormir imaginando algum jacaré debaixo da cama. De vez em quando ele sai de lá e morde. Este aspecto de fragilidade no empoderamento social, de caráter mais individual e particular, decorre das fragilidades emocionais, muitas das quais reforçadas pelo profundo estresse que atinge alguns companheiros com menor resistência antológica – ou capacidade de resiliência, como nessa "modernidade" se costuma chamar a carne de pescoço que somos (ou que deveríamos ser).
Um segundo ponto a considerar é o fortalecimento das representações ambientalistas em conselhos participativos, associada à capacidade técnica e política que deverá ser garimpada entre os mais lúcidos do país, para garantir presença em Câmaras Técnicas e Grupos de Trabalho, que são o calcanhar de Aquiles de conselhos normativos, em especial do CONAMA. A terceira é a garantia de transparência, com transmissão das reuniões dos conselhos on-line, divulgação de atas e matérias em discussão (que preferencialmente devem ser debatidas previamente para posicionamento coletivo). A quarta é a avaliação qualitativa dos conselhos participativos, em seus aspectos de democracia ambiental e caráter pró-sustentabilidade , prioridade que já alimenta o projeto iniciado pelo PROAM, para os estudos de caso do CONAMA, do CONSEMA/SP e do CADES/São Paulo. Coloco ainda um quinto ponto, não menos importante, que é a consolidação e fortalecimento de ongs cuja prioridade seja o controle social e que possam respaldar este conjunto de atores, com suporte jurídico e técnico. Finalmente, mais dois aspectos: a capacidade agregadora deve inspirar um diálogo com outros setores afins, como Ministério Público, OAB, universidades, IAB, SBPC e outros setores que tantas vezes se alinharam com o movimento ambiental, uma campanha ou outra. Para terminar, não por último, é preciso escrever com coragem a agenda da sustentabilidade. A sustentabilidade real, a sustentabilidade da nação, não aquela sustentabilidade que cada um usa de forma pessoal, como se fosse uma escova de dente.
A velocidade do catapultamento está impedindo uma reflexão sobre este momento conjuntural e o movimento ambientalista não pode cochilar ou adotar estratégias erradas. Não há lugar para posições de caráter pessoal e equívocos, nem falta de compreensão sobre a necessária resistência e enfrentamento qualificado nos espaços públicos criados para participação social conforme estabelece a Constituição Federal. Este processo sempre foi desgastante, nunca foi ameno e não há glamour na defesa do meio ambiente que alguns devem imaginar. É um trabalho duro que exige boa capacidade de resistência. Respondo a vários processos movidos por degradadores, geralmente daqueles frustrados em seus objetivos insustentáveis, e isso tem demonstrado que existe também um recrudescimento orquestrado para intimidação.
Em tempos de crise e fragilidade conjuntural é preciso saber resistir, fortalecer e manter posições, além de rever estratégias. Certamente a audácia de uma carga de cavalaria ligeira não representará nenhum sucesso contra bunkers econômicos e governamentais. Está em jogo a eficácia e inteligência do pensamento ambientalista, que pode perder batalhas, mas não a lucidez. Refiro-me aqui a todos os setores, onde a dimensão ambiental reside e resiste de forma paradigmática. Sem nenhuma perspectiva excludente, em busca de todos os melhores esforços. O sonho da razão cria monstros, portanto cochilar neste momento pode lançar o movimento, no contexto dessa catapulta econômica e desenvolvimentista, no beco sem saída do descrédito da ineficiência. Precisamos construir uma proposta de sustentabilidade com metas, que seja plausível e eficaz, onde a dimensão biológica possa avançar em contraposição à nefasta lógica e o tempo meramente monetarista. É preciso refletir que, se é ruim sermos catapultados para o "progresso", pior será se as premissas ambientais forem decapitados pelo processo.
*Carlos Bocuhy é Conselheiro do Conselho Estadual do Meio Ambiente de São Paulo e Presidente do PROAM-Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental
Página oficial do CONSEMA:
http://www.ambiente .sp.gov.br/ Consema/128. htm
terça-feira, 21 de outubro de 2008
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