Brasília e a Marcha para o Setor Noroeste: Bandeirantes, Indígenas e a Arquitetura do Racismo Institucional.
Rafael Moreira Serra da Silva
Planejar o urbanismo e a arquitetura, monumentos, avenidas, ruas, praças e fachadas dos contornos urbanos das metrópoles respondem a anseios sociais, expectativas políticas, rearranjos econômicos, desenhados numa incessante atmosfera de conflitos, derrotas de uns e vanglorizações de outros. A partir de Brasília, assinalo algumas forças motrizes no horizonte histórico da formação e consolidação da cidade enquanto modelo norteador da vida e da morte atualmente de grande parcela da população mundial. Observa-se de antemão rostos e feições apressados, impacientes e sisudos dos funcionários públicos, desempregados, empresários, cristãos, políticos, e espectros anônimos que orquestram a maestria da sociedade civil brasiliense ordenada, pacífica e indiferente. Entretanto, há muito mais além da pusilânime persona civilizada e do bem estar tão elogiados da cidade-monumento.
Para interrogar a cidade parto da reflexão de Foucault[1] de que “a política é a continuação das guerras por outros meios”. (1999:22) Voltemos ao passado antes de falar do futuro, rebobinemos um pouco antes de apertar o play, meio em stop motion vamos dar um zoom num dos motivos suscitados para a interiorização do país. Tendo a guerra como cenário de fundo, um dos principais argumentos para a mudança de capital era a ocupação para defender a soberania nacional, sair do litoral e marchar ao centro-oeste, levar a cidade e abraçada à civilização, uma nítida estratégia militar, inventar uma capital do país bélica, livre de ataques navais e de insurreições populares, a paz foi armada e com ela a pátria. O Rio de Janeiro antiga capital do Brasil foi sitiado algumas vezes, entre elas a Revolta da Chibata de 1910 liderada por João Cândido, chamado Almirante negro merece destaque. Os castigos físicos eram comuns na marinha brasileira, revoltados com as humilhações, os marinheiros em maior parte negros ameaçaram bombardear a capital federal. O desfecho foi que as chibatas foram abolidas, alguns insurgentes fuzilados, outros presos, João Candido foi expulso da marinha e internado como louco no Hospital dos Alienados.
Mary Karasch[2] levanta que a maior parte da população carioca até o séc. XIX era de afro-descendentes como João Cândido, povos traficados, em maior parte originários do centro-oeste africano, e indígenas. Logo após a chegada da coroa portuguesa houve mudanças no plano urbano da cidade, uma biblioteca nacional foi aberta, o Banco do Brasil fundado, entre outras coisas, uma Escola Superior de Belas Artes foi inaugurada. O pintor francês Debret[3] chegou nesse momento, publicando anos mais tarde entre 1834 e 1839 na França após o regresso do Rio de Janeiro, o Voyage Pitoresque et historique au Brésil. Suas aquarelas sofreram críticas do IBGE por detalhar “costumes de escravos e cenas populares com tanto realismo” (Debret 1978:13). Outro francês, Joseph Artur de Gobineau[4] foi recepcionado anos mais tarde por Dom Pedro II no Rio de Janeiro, residindo de 1869 até 1870 no país. Durante sua estadia, completava 60 anos da fuga da família real de Portugal ao Brasil. Sua impressão das ruas cariocas do séc. XIX foi de asco, ele não suportava ver tantos africanos e indígenas. Caso Debret fosse vivo, não mais pintaria na capital federal do Brasil construída um século depois, negros, ruas ou aglomerações humanas, em vez disso mostraria praças vazias e um quadro em branco mostrando os prédios de Brasília. Os planos de Gobineau não vingaram com a população, porém o embranquecimento foi um sucesso na arquitetura como mostra Oscar Niemeyer, que queria expor, “formas que não se apoiassem no chão rígidas e estáticas, como uma imposição de técnica, mas que mantivessem os palácios como que suspensos, leves e brancos, nas noites sem fim do Planalto”. (HOLSTON: 1993. P.99).
Brasília começou a ser gestada durante turbulento período político nacional e internacional. A discussão sobre a mudança da capital do Rio de Janeiro para o interior do país estava sendo germinada desde Marquês de Pombal, já no fim do séc. XVIII. José Bonifácio de Andrada e Silva foi o responsável por cunhar o nome Brasília, que veio a ser referendado na Constituição de 1824, outorgada por D. Pedro I. Depois do nome aceito, o texto da transferência foi acatado na Constituição de 1891, sendo finalmente ratificado na Constituição de 1934. Deodoro da Fonseca em 1890, um ano antes do texto de transferência para a capital federal ser aprovado, outorgou uma lei que limitava a entrada de africanos e asiáticos no país. Em 1899, Nina Rodrigues publicou “Mestiçagem, degenerescência e crime”. Na década de 30 do séc.XX, houve o estímulo da imigração branca européia para o país. A capital federal foi o carro alegórico do modernismo. No dia 21 de abril[5] de 1959 foi inaugurado pelo presidente Juscelino Kubistchek o posto de abastecimento de automóveis Esso Tiradentes, pioneiro em terra de pioneiros. (HOLSTON: 1993 p.211) O anúncio mostrava a caracterização de um funcionário da construção civil. Sua imagem impressiona pelo “close” dado aos seus braços e bíceps, sobressalentes sobre todo o corpo, que apresentavam ainda a pele toda marcada, calejada pelo intenso trabalho braçal. A propaganda frisava que Brasília é algo para compartilhar com os outros, como se o operário fosse parte do “corpo” brasileiro. Ele aprece em de pé dizendo em destaque “Moço, eu fiz essa cidade” e ao fundo, na parte de cima aparece no horizonte à imagem do Congresso Nacional. Porém, segue em menor relevo e com menos destaque, outro texto que mostra ele com um pensamento reticente que sobrepõe a sua primeira afirmação confiante, ele diz titubeando: “Quer dizer, eu não fiz ela toda, mas ajudei um bocado!”.Parece que há alguém na espreita lhe observado lhe observando, uma pessoa que não aparece na imagem, que interrompe sua fala e diz, “Assim como ele, milhares de outros candangos (o termo aparece entre aspas)... milhares de novos bandeirantes se orgulham de ter feito Brasília”. Acabado a apresentação, emerge abaixo timidamente a figura desenhada de carros sendo abastecidos, caminhões e trabalhadores num posto da multinacional, ao final surge o anunciante do discurso “A Esso brasileira de Petróleo esteve ao lado desses homens desde o primeiro instante”.
A estética do qüiproquó, os objetos esculturais, e monumentos de Brasília baseiam-se no que Umberto Eco diz de arte kitsch, “que, ao invés de propor formas novas, lisonjeia o seu público repropondo-lhe formas já experimentadas e carregadas de prestígio”. (1976:79). O Plano Piloto de Lúcio Costa “Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse; dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz.(1991:20). Dizia-se aqui seria o berço de uma nova civilização, Eldorado, Novo Mundo[6], água, leite e mel jorrariam segundo Dom Bosco. Hernan Cortez também falava sobre o Novo Mundo, e a mando da coroa espanhola ele catequizou e contrabandeou inimaginável quantidade de ouro, jóias e pedras preciosas do México a Espanha. Todorov fala da importante tática de controle simbólico feita por Cortez, mostrando o papel das cruzes instaladas no lugar de culto sagrado dos diferentes grupos indígenas sob julgo do império azteca, que tinham cosmovisões e línguas diferentes. Enrique Dussel questiona o “descobrimento” da América pelos espanhóis como um encontro, dizendo que foi um enfrentamento de mundos. A estética modernista como aponta J.Holston é uma técnica de apagamento e reinscrição, porém se fizermos um palimpsesto da arquitetura e do urbanismo de Brasília vemos um colonialismo às avessas, um enfrentamento para obliterar o negro e o indígena vistos como signo do atraso nacional, fruto do atavismo do velho eurocêntrismo.
Billy Blanco escreveu um samba enredo popular de carnaval em 1958 sobre a nova capital federal, dizendo “Eu não vou para Brasília, não sou índio nem nada, não tenho orelha furada, mesmo que seja pra ficar cheio de grana, quero ser pobre sem deixar Copacabana.” Em 1958, Antônio Inácio Severo, José Ribeiro, José Carlos Veríssimo e Elói Lúcio, todos eles da etnia Fulni-ô[7], vieram construir a capital federal. Carlos Magalhães afirma ter conhecido Antônio Inácio Severo, apelidado de índio “Juscelino” nos canteiros de obras, e que os trabalhadores comentavam que os indígenas tinham o costume de praticar rituais religiosos em áreas de cerrado na Asa Norte. Devido a esse fato, os indígenas conheceram o policial florestal Arlindo, dono de algumas vacas e reses de terras, que assumiu o posto de vigia do Parque Nacional após o golpe de 64. Arlindo tinha algumas vacas, e ofereceu-lhes certa quantia de dinheiro para cuidar dos animais. Na área havia pés de bananas que servia como alimento e que era vendido pelos indígenas na frente da BR-020. A FUNAI chegou na década de 60 a Brasília, e nessa época firmou um convênio com a Casa do Ceará, o que possibilitou a consolidação dos indígenas na antiga área da Fazenda Bananal[8], primeira terra desapropriada para a futura capital. Uns anos depois chegou à irmã de José Carlos, a indígena Fulni-ô Maria Veríssimo Machado, e em 1976 alguns sobrinhos e seu filho Santxiê Tapuya. Paulo Bertran sustenta que a região do Distrito Federal durante a colonização aurífera do séc. XVIII, ao norte da latitude de Brasília até a confluência do Araguaia, era habitada por indígenas Acroá e Xacriabá que são do mesmo tronco dos Fulni-ôs, o Macro-Jê.
Santxiê luta há anos pela demarcação oficial da terra indígena, recebendo e hospedando historicamente pajés e lideranças de diferentes etnias, que vem cobrar direitos políticos na capital federal[9]. O tempo de Brasília voltado ao futuro, não liquefez a cartografia geopolítica do sagrado construído sutilmente pelos saberes indígenas ancestrais. Antes mesmo dos prédios, pistas ou praças da cidade, os parentes de Santxiê recebiam nessa área de cerrado a visita de espíritos existentes em outra temporalidade. Trata-se então da única área para celebrações indígenas no Distrito Federal, um santuário guardião do Edjadwalhá Eti[10], local de culto que conecta com o que Renato Sztutman define como cosmopolítica “já que irredutível a um domínio humano-o domínio macroscópico ou visível das relações multilocais-dada a inflexão, a todo o momento, de um plano cósmico.”
Apesar do desprezo aos povos indígenas, Brasília tem uma “tatoo tribal” genérica, o Memorial dos Povos Indígenas. Espaço de nenhum destaque, de arquitetura indiferenciada e branca, somente uma pequena placa indica a sua existência fantasmática como um vulto. Um museu é algo que guarda a memória, todavia, esse memorial lançou-os indígenas que habitam em Brasília no imemorial, longínquo. Santxiê em entrevista a revista Filosofia Capital diz que “quando se fala de Memorial a questão a ser tratada é a de um cemitério”. Poucos brasilienses visitam ou sabem da existência do local, para ampla maioria trata-se de ver algo extinto, morto. Entretanto há alguns passos dali uma estátua gigantesca ganha destaque, de ilustre memória ainda viva em novelas globais, livros, músicas e nomes de pontes e aeroportos na cidade, eis o memorial JK. Santxiê diz sobre ele “Por que de frente você vê o colonizador Juscelino, em cima de uma tábua, em cima de um prédio, mas, lá em cima”.
Incorporando as teorias de Racismo Institucional teorizado por Kwame Toure[11] e Charles V. Hamilton, que eles dizem originar-se basicamente “na operação de forças instituídas e respeitadas da sociedade”, e do Racismo Monumental de José Jorge de Carvalho, situado a partir da hierarquização fenotípica do branco como modelo civilizacional, modelo que ele diz que “atravessou impérios, regimes feudais, teocracias, democracias e vários tipos de totalitarismos” percebemos como Brasília conseguiu ser mais monocromática na arquitetura que Atenas[12] antiga. Incorporar[13] significa unir, reunir, juntar, em um só corpo um só todo. Baudrillard diz que “o estranho é que o corpo não é senão os modelos nos quais os diferentes sistemas o encerraram e, ao mesmo tempo, algo totalmente distinto: sua alternativa radical, a diferença irredutível que os nega. Podemos ainda chamar de corpo essa realidade inversa”. (1996:156) A estética é política, quer seja no corpo ou nas instituições que a incorporam e personificam. Vemos que o racismo institucional e monumental é camaleônico, (in)corporificam-se em decretos e leis (corpo jurídico), ações financeiras (corporações), a hóstia divina (corpo de cristo), a sociedade (corpo social), etc.
Em Brasília vemos uma coexistência mesmo que não em simbiose, entre elementos indígenas e o modernismo, a terra indígena é vista como o convidado inesperado Eunice Durham discute sobre a pesquisa de populações urbanas no Brasil, dizendo que não era o seu interesse a “vasta produção sobre as populações indígenas e a sociedade rural, que estão a exigir o exame por parte de antropólogos mais familiarizados do que eu com esses ramos específicos da antropologia”. O geral e o específico são atribuições difíceis de referendar, dependem antes de tudo de onde se posiciona o olhar, de um contexto anterior. Esses pressupostos apresentados por E. Durham se tornaram efêmeros ainda que não obsoletos, e já não garantem um porto seguro, pois reificam os indígenas como o particular, em oposição ao urbano, visto como o geral. João Pacheco de Oliveira critica o descaso histórico dos órgãos indigenistas[14] em relação às etnias do nordeste, baseado na justificativa de que teriam um “alto grau de incorporação na economia e na sociedade regionais”. O índio “folk” é o espelho inverso do problema, nesse sentido Nestor Canclini[15] aponta críticas interessantes a antropólogos e folcloristas que pensam “como se a enorme maioria dos indígenas do continente não tivessem vivendo há décadas processos de migração, mestiçagem, urbanização, diversas interações com o mundo moderno.”
D.Harvey traça um link entre o aumento de custo de vida nas cidades e o processo de urbanização regido pelo capital, baseado na especulação de terras e habitação. O sistema especulativo tem responsabilidade direta pelas inúmeras crises financeiras dos últimos anos. Um ponto importante do seu argumento é que os excedentes financeiros das empresas são reinvestidos principalmente “na compra de ativos, ações, direito de propriedade, inclusive intelectual, e é claro em propriedade imobiliária”. O Setor Noroeste[16] se adequa ao modelo proposto por D. Harvey. Enlaço outra dimensão ao processo de urbanização e crescimento das cidades. Seguindo o raciocínio, pessoas sem suficiente poder aquisitivo que habitavam ou alugavam uma casa, apartamento ou kitnete numa determinada área valorizada, partem a outros lugares mais baratos condizentes com sua capacidade financeira. Emerge desse modelo, uma imensa onda imobiliária que cria uma força centrífuga e centrípeta de crescimento urbano e maior necessidade de infra-estrutura, basicamente maior malha viária, que propicia maior estimulo ao uso do carro[17], e mais espaços públicos pavimentados. A indústria automobilística, o mercado imobiliário e as guerras fagocitam os direitos públicos, pulsando nas veias do capitalismo viram sinônimo de velocidade, segurança e moradia, sendo prescritas e vendidas pelos organismos internacionais e mercado financeiro aos seus fiéis clientes, os governos nacionais. Em Brasília, são essas as principais forças modeladoras da cidade e da vida urbana.
Félix Guattari distingue sob a égide capitalista uma subjetividade que molda boa parte da população mundial, creio aplicável aos indígenas em Brasília, os não garantidos (1990, p.46). Confiro outro nome a essa coletividade, redefinindo-os como os não-cidadãos. Creio ser possível de percebê-los em contexto global, estão presentes em qualquer cidade do mundo. Sem titubear eis uma pergunta. E qual o perfil dos não-cidadãos do planeta? Existem traços culturais e históricos que deveriam ser esmiuçados a rigor antes de deixar fechada a questão, contudo há certas características que remetem a dinâmica de esfacelamento dos direitos sociais na cidade que repercutem em âmbito mundial, em termos de inacessibilidade de ascensão social, de educação, transporte público eficiente, saúde, lazer, liberdade religiosa, disponibilidade de água tratada e moradia, negligenciadas a certas coletividades específicas de acordo com critérios raciais, de classe e de gênero.
Alain Touraine diz que o termo cidadania remete ao âmbito do Estado Nacional[18]. Posto a guisa desse conceito a reflexão de Z.Bauman sobre a metamorfose dos consumidores em mercadorias nas sociedades contemporâneas, vejo que o cidadão se tornou molde de alastrar e ufanar o modus operandi da cidade em termos de subjetividade, disciplina, conduta e hierarquia espaço-temporal a um corpo político, indicando um exercício de poder, de controle. Mais do que o reflexo de uma concessão dado ao cidadão narciso do capital, que vende cidadania como sabonete ou souvenir, levar cidadania a todos é outra forma de ampliar a cidade e o capital. Logo, elencar os elementos da não-cidadania como nodais de debate demandam complexificações em termos econômicos, políticos, sociais, histórico e cultural vendo em que pontos se tangenciam e em quais se distanciam de forma transversal. Nem pagar os tributos (deveres) nem ser súdito (direitos) de um Estado pode qualificar mais a cidadania, muito menos a temos nas mãos apenas por ser habitante de um espaço urbano.
Assunto não esgotado, mas sempre com novos pontos por vir, o epicentro do presente artigo indagou mais do que respondeu a árdua tarefa de re-apresentar Brasília, sua caricatura e criaturas. Dos escombros de sua utopia perdida ainda florescem vertigens monstruosas, como o setor Noroeste. Não torno à cidade familiar, melhor despi-la com os olhos do triunfal estranho, desconhecido e inesperado transeunte que esse sítio naturalizou na sua negação ontológica, os fantasmas do passado se tornam presentes, falo dos mortos para fazer uma necropsia do cadáver democrático sepultado na megalomania estatal. Se tomarmos a contra mão que indica Paul Veyne “que os povos ditos sem história são simplesmente, povos cuja história se ignora, e que os ditos primitivos têm um passado, como todo mundo.” (2008: p.27) seguimos uma boa pista, e introduzimos um senso de historicidade (história da cidade) alheio ao modernismo. Para tal, é preciso seguir além do eixo-monumental de discussão, duelar contra as petrificações esculpidas no imaginário dos habitantes de Brasília, antes de qualquer coisa perceber que paisagem idílica da nova capital federal não foi planejada a todos, e que nem todos que estão na cidade são cidadãos. Viveiros de Castro diz que “o caipira é um índio, o caiçara é um índio, o caboclo é um índio, o camponês do interior do Nordeste é um índio”. Digo que o candango é um índio, que percebeu que a casa “que ele fazia era sua escravidão”, eles que ‘sempre diziam sim, aprenderam a dizer não.
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[1] Clausewitz dizia que a “guerra é a continuação da política por outros meios”. Foucault inverte esse raciocínio, para ele não há apaziguamento de conflitos na política, existem dominações diversas que regem a história, sombras que emergem das pacificações violentas; exploração de povos, assassinatos, estupros, golpes e torturas. As leis e os discursos insuflados pela paz deixam em relevo o que era subjacente, o estado de guerra intermitente na política. Quer dizer, não só o ato dela em si, batalhas, disputas e quimeras visíveis entre Estados nacionais, mas a guerra como uma força que figura em diversas esferas da sociedade, seja no urbanismo, a segurança ou o saber. Segundo um estudo da UNESCO de 2005, no Brasil havia mais mortos por arma de fogo do que no conflito entre Israel e Palestina. Águas Lindas, cidade do Entorno do Distrito Federal, está sitiada pela Força Nacional, na região quase 4000 ocorrências policiais foram registradas, 78 homicídios, 221 ameaças e 10 estupros no ano de 2008. Dados do SINARM (Sistema nacional de Armas) mostram que Brasília lidera a venda de armas de fogo no país, empresas e o mercado de segurança privada são os principais consumidores.
[2] Mary Karasch apresenta detalhes preciosos da vida urbana do Rio de Janeiro sob o regime escravocrata. A escravização de indígenas era proibida, mas ocorria de forma clandestina. O mercado de escravos carioca Valongo era o maior do país, lá eram vendidos e alugados legalmente a diferentes preços, mulheres, crianças, jovens e adultos africanos de diferentes origens étnicas.
[3] Debret foi contratado pela coroa portuguesa, e durante mais de uma década fez uma ampla documentação do quotidiano das ruas cariocas. Chegado ao Brasil em 1816, alguns anos depois da chegada da família imperial, o mais marcante das suas pinturas são os detalhes da vida dos negros e seus senhores no regime escravocrata.
[4] As teorias racistas foram se desenvolvendo durante séculos e em diferentes civilizações. A idéia de pureza racial de cunho biológico se espalhou pelo globo acompanhando o fluxo das revoluções tecnológicas, o colonialismo e as guerras ao redor do mundo principalmente entre os séc. XIX e XX. Teóricos europeus como Cesare Lombroso, Hegel, Gobineau, Richard Wagner etc, influenciaram em áreas como criminologia, eugenia, filosofia, música, artes cênicas e visuais. As ciências sociais e os elementos artísticos europeus foram fundamentais provedores da arquitetura de diversas metodologias de superioridade de uma raça branca sobre outras não brancas. Autores como Benjamin Issac, Cheik Anta Diop e Martin Bernal fazem estudos interessantes sobre o processo histórico de embranquecimento e superestimação cultural de Atenas antiga e dos gregos sob o escopo de critérios racistas.
[5] 21 de abril de 1960, inauguração de Brasília. 21 de abril de 1500, a esquadra de Pédro Álvares Cabral avista o litoral nordestino, aportando no dia 22 de abril. Os escravizadores, assassinos de indígenas no passado colonial, viraram heróis nacionais na década de 30 do séc XX, figurando como um duplo dos conquistadores portugueses. Os bandeirantes são figuras escatológicas, é o cowboy norte americano, o John Wayne “tupiniquizado” da corrida para o oeste, sedento de ouro. Brasília é o último episódio da marcha para o oeste de Vargas, parte do mesmo enredo dos westerns, muda-se os nomes, mas segue o mesmo bandeirantismo em novas roupagens, a continuação do filme é a marcha para o setor Noroeste
[6] Heinz Dieterich fala sobre as cruzadas malogradas ibéricas sobre os reinos árabes da África trezentos anos antes da conquista da América, o “Novo Mundo”. O Papa Urbano II dizia que a região da Palestina era o Paraíso terrestre, assim como Dom Bosco, ele fazia promessas de que lá “corria la miel y la leche y cujas tierras eran las más fértiles de todas”. DIETERICH, Heinz. Emancipación e identidad de América Latina: 1492-1992.
[7] Essas informações sobre a chegada dos Fulni-ôs provêm do antropólogo Rodrigo Thuler Nacif da FUNAI. Até o séc XIX se dizia que não havia mais indígenas na região devido ao forte processo histórico de colonização que se iniciou no litoral nordestino. O primeiro grupo do Nordeste a ser reconhecido pelo extinto SPI (Sistema de Proteção do Índio). são os Fulni-ôs, que são um dos únicos grupos que praticam sua língua o Yathé, e mantém rituais fechados a não indígenas como o Oricuri.
[8] A fazenda Bananal se localizava entre o rio Torto e Bananal, e chegava onde hoje é a Esplanada dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes. Essas terras foram tornadas de utilidade pública no dia 30 de dezembro de 1955. Informações do arquivo público de Brasília.
[9] Em 2008, o Santuário dos Pajés obteve reconhecimento federal com o prêmio de culturas indígenas do Ministério da Cultura, Xicão Xucuru. Durante o julgamento no STF do caso Raposa Serra do Sol, lideranças indígenas visitaram o local. O relatório de levantamento prévio da antropóloga Stella Ribeiro da Matta Machado por solicitação da FUNAI (processo nº 1230/2003), assim como do Antropólogo da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, Marco Paulo Fróes Schettino, da Antropóloga da FUNAI, Andréia Luiza Leandro Barbosa Magalhães, e do Geógrafo Marcelo Gonçalves Oliveira e Silva, indicam elementos de tradicionalidade dessa ocupação indígena na capital federal.
[10] A terra indígena Bananal está localizada numa área de cerrado nativo preservada dentro do Parque Burle Marx, perto da área urbana da Asa Norte. Uma das entradas para o local é a W5 norte, onde bem em frente existe a Paróquia São Francisco. Além dela há outros templos religiosos, inclusive uma mesquita islâmica seguindo a mesma avenida. Condomínios irregulares foram construídos na área, ferindo o tombamento de Brasília, já que no plano inicial o local era destinado a escolas e igrejas. Na terra indígena do Bananal existe um espaço de pajelança ecumênica, Edjadwalhá Eti (escrita em Yathé para “casa de reza”). O Santuário dos Pajés recebe indígenas em trânsito na capital federal, propiciando um sítio seguro para a realização de rituais.
[11] Kwame Toure anteriormente chamado de Stockely Carmichael foi influente ativista dos Panteras Negras na década de 60 nos Estados Unidos, tendo sido casado com a cantora sul-africana Miriam Makeba.
[12] Atenas não era branca, José Jorge de Carvalho diz que “tratava-se de um mundo de muitas cores de pele e traços fenotípicos variados, dada a convivência secular com egípcios, fenícios, persas e judeus, todos de pele escura e não branca”. CARVALHO, José Jorge. Racismo Fenotípico e Estéticas da Segunda Pele, Revista Cinética,www.cinetica.com.br. ISSN 1983-0343, 2008.
[13]. O Barão Haussmann realizou uma reforma urbana no centro de Paris no séc. XIX que se tornou paradigma de urbanização, pelas analogias médicas e sanitárias. A cidade foi biologizada, ganhou um “corpo”. Uma das justificativas apresentadas por Haussmann para “curar” as ruas parisienses no séc. XIX, ou melhor, os bairros operários, era dotar a cidade de ”espaço, ar, luz, áreas verdes e flores, em suma tudo aquilo que traz saúde”. As ruas centrais parisienses se tornaram assépticas, a pobreza foi afastada, as revoltas populares mais fáceis de apartar, e o problema de moradia não foi resolvido. No séc. XX, Le Corbusier, que também fazia analogias entre a cidade e o corpo humano, projetou em 1925 o Plan Voisin que foi uma “haussmanização” em grande escala do centro de Paris, tal qual uma enorme ’’cirurgia plástica’’ no corpo da cidade. Le Corbusier foi professor de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, e teve enorme influência junto com o urbanismo desenvolvido por Haussman nas cidades moldadas pelo CIAM, que em parte sintetizam Brasília. Paul Rabinow cita como esse modelo urbanístico serviu para controlar o Marrocos, que foi colônia francesa até 1956.
[14] O presidente da FUNAI Márcio Meira pode ser indiciado por improbidade administrativa por não responder as reivindicações da Terra Indígena Bananal, que está em perigo devido ao projeto Setor Noroeste.
[15] CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas. Editora da Universidade de São Paulo. Pg.146.
[16]O setor Noroeste surge no documento Brasília Revisitada de 1987, assinado por Lúcio Costa. Entretanto, sua filha Maria Elisa Costa e o sócio de Oscar Niemeyer, o arquiteto Carlos Magalhães que inclusive participou da confecção do projeto são contra o novo bairro, alegando deturpação e uso indevido do nome de Lúcio Costa. O setor Noroeste é o metro quadrado mais caro do país (oito mil reais), injustificado já que não existe déficit habitacional para a elite de Brasília. O Ministério das Cidades indica que há cerca de 53 800 moradias ociosas somente no Plano Piloto. Lembremos que havia até o ano 2000 a previsão de uma população de 500 mil habitantes para a cidade, estimativa ultrapassada ainda na década de 70. A UNESCO ameaça retirar o título de Patrimônio Cultural da Humanidade devido à desconfiguração do plano urbanístico original. Lúcio Costa não conhecia a presença da terra indígena Bananal na área, anterior ao Brasília Revisitada. A companhia de terras de Brasília TERRACAP que é a maior Brasil, arrecadou 537 milhões de reais com a primeira licitação dos terrenos para o bairro, sendo que 500 milhões foram desviados para a reforma do estádio Mané Garrincha para a Copa de 2014. O vice- governador da cidade Paulo Octávio, empresário do ramo imobiliário, secretário de turismo, financiador dos principais jornais de Brasília, de rádio, televisão, e único bilionário do centro-oeste, foi um dos compradores dos lotes. Empresas nacionais e grupos estrangeiros como a Wiliam J. Funds do ex-presidente Bill Clinton chegam a Brasília. Os olhos ávidos do sentinela financeiro enxergam a última área verde de cerrado nativo do Plano Piloto ao lado do Parque Nacional, o sítio alvo para o bairro, como reserva de mercado e protege a todo custo as únicas plantas que lhe convém, as imobiliárias. Ironicamente o setor Noroeste é divulgado como a primeira “Ecovila” nacional.
[17] A média da venda de carros em Brasília antes da “crise financeira” era de 8,5 mil por mês. Até março de 2009, 9 mil veículos foram comprados no DF. Marcelo Sampaio, diretor da Citröen Saint Moriz dizia sobre o mercado automotivo de Brasília em entrevista ao jornal Correio Braziliense. ”Estamos vivendo um momento mágico”. Magia ou bruxaria, o fato é que Brasília se equiparou recentemente a Los Angeles na quantidade de veículos automotivos. Segundo o DETRAN-DF, há 1 veículo para cada 2,3 habitante atingindo-se a preocupante marca de 1 milhão de carros pessoais. A estrutura urbana da cidade não comporta aumento da frota. Enquanto isso, os espaços públicos para o pedestre e ciclistas são minados de forma nítida na capital federal, e por outro lado para os carros não há limite, sobem meio fios, calçadas, áreas verdes, geram estacionamentos subterrâneos e criam sub-empregos como os “flanelinhas”, também chamados de vigias de carro. O transporte público caro e ineficiente, vide expandir essa conclusão a todo o Brasil, influencia um boom automobilístico e imobiliário, cada prédio novo, significa mais vagas e carros.
[18] Alain Touraine sustenta que “a consciência de ser cidadão, surgida durante a Revolução Francesa, estava antes de tudo, ligada a vontade de abandonar o Antigo Regime e a servidão”. Touraine, Alan. O que é a democracia?Em O que é cidadania. Pg. 94. 1925.